quinta-feira, 10 de junho de 2010

Há anos que não durmo esperando que cheguem. Passo as noites acordado nessa fortaleza de solidão, postado numa cidadela. Não sinto mais nada que me faça reclamar do desconforto de estar de pé aqui ao relento. Já não sinto frio, nem calor, nem neve ou chuva. Passo dias e noites em vigília, esperando-os chegar. Até que finalmente, hoje na alvorada vi seus navios de guerra alinhados, infeccionando o horizonte. Vieram para uma guerra que não haverá porque os que juraram morrer comigo, fugiram em desespero diante da pesada punição reservada aos que nunca se sujeitam às ameaças das divindades. Mesmo sabendo que por estar sozinho a resistência durará muito pouco, seguro forte o cabo da lâmina, dessa vez, não para defender minha torre, pois é certo que queimarei com ela, mas para lutar à exaustão até aquecer meu sangue. Quero que este ao ser derramado num solo sem honra exale a certeza de que não me rendo à fúria de deuses ou ao código de bandeiras. Minha alma que não possui valor cerimonial de sacrifício, será usada como mero combustível para o fogo que irá me consumir até aos ossos, me apagando de vez desse ciclo interminável de buscas por tudo em troca de nada, me dando enfim, o sossego e paz que nunca pude ter quando em vida!

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Ontem à noite ele tava meio fora do rumo. Ele tava estranho. Ele que só veste preto botou camisa vermelha e partiu sozinho pras quebradas. Ele que raramente usa cítrico, irradiava menta e solarium. Ele tava estranho. Tava numa rinha larga de areia grossa. Ele era dente rangendo, era um corisco. Ele que só se reconhecia quando o chamavam de imperador da calçada. Ele que caminha, ontem sambava. Justo ele, o pai dos precavidos, ontem zanzava distraído pela Riachuelo como mais um filho da Lapa. Ontem ele tava estranho, ele não tava em casa. Então, repentinamente, ele não quis mais beber sereno, botou chapéu de aba quebrada e saiu de braço com a de vestido colado. Com isso, a noite que não tinha mais outro compromisso, foi junto com ele, tão logo virou madrugada.
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A vida até parece uma festa. Em certas horas isso é o que nos resta. Não se esquece o preço que ela cobra. Em certas horas isso é o que nos sobra. Ficar frágil feito uma criança, só por medo ou por insegurança. Ficar bem ou mal acompanhado, não importa se der tudo errado. Às vezes qualquer um, faz qualquer coisa por sexo, drogas e diversão. Tudo isso, às vezes só aumenta a angústia e a insatisfação. Às vezes qualquer um enche a cabeça de álcool, atrás de distração, mas eu digo: nada disso, às vezes diminui a dor e a solidão. Tudo isso, ás vezes tudo é fútil. Ficar fébrio atrás de diversão, nada disso, às vezes nada importa, ficar sóbrio não é solução. Diversão; é solução sim. Diversão; solução prá mim.
                                                                                                                
(Nando Reis e Sergio Britto)


domingo, 6 de junho de 2010

Elas cresceram juntas na mesma vizinhança, tornando-se inseparáveis como amigas e confidentes. Dora que mais tarde tornou-se funcionária da Casa da Moeda, nunca se casou. Teca, que para sair de casa, escapando assim do jugo de um pai religioso rígido demais, controlador; namorou, noivou e casou antes dos trinta com o primeiro que apareceu. Mesmo com vidas girando em torno de mundos diferentes, as duas nunca deixaram de se falar diariamente e entre lembranças e confissões, a casada aproveitava sempre para dizer que não agüentava mais o marido e em seguida detalhava uma lista reclamações dele, que iam desde frágeis hábitos de higiene, passando pelo lamento de ter casado muito jovem com um divorciado vinte anos mais velho. Certa vez, a solteira juntou alguns pontos e percebeu que a casada nunca falava se ainda havia sexo com o marido. Ao perguntar, ouviu que já teve sim e era uma bosta!
Teca mentiu! Não conseguia contar que todos os dias, depois que mandava os filhos para escola, o marido chegava para almoçar e a pegava por trás ainda na pia, enquanto ela com as pernas bambas fazia fita fingindo tentar livrar-se dele. Ao perceber o mise-en-scène, ele a pegava mais forte e arrastava até a mesa da cozinha. Teca não quis confessar que apenas num único momento do dia, adorava aquele cheiro de suor e graxa combinado a despudorada fome de safadeza que ele nunca escondeu. Assim, Dora que pensava saber tudo sobre Teca, não sabia, por exemplo, que ela todas as tardes esperava contando nos dedos a hora de ser dominada e colocada de bruços sobre a mesa para logo depois permitir-se ser servida sem resistência os caprichos daquele homem rude, que para a melhor amiga, jurava piamente sentir por ele total repugnância.
Infelizmente não tenho mais condições de voltar crer nas coisas que com o tempo fui deixando de acreditar, mesmo assim estou me preparando para retornar ao meu antigo clã, onde fui xamã. Os motivos são sempre os mais egoístas possíveis. Estou ganhando anos a mais e muitas marcas num corpo já gasto. Isso me induz procurar estar mais perto dos que poderiam me propiciar certos cuidados, o que não muda nada diante da aproximação da total falência física e mental que cada ano vivido adiciona à sorte de quem se atreve a viver tanto. Por mais que se pense estar preparado, o medo de que as forças falhem num momento em que se esteja só, sem um sorriso de afago é muito forte. Meu afastamento destas coisas me possibilitou enxergá-las de uma forma diferente, compreender um pouco dos mecanismos que são usados para sustentá-las e as razões pelas quais são socialmente necessárias e preservadas tradicionalmente num antigo culto.
Viver por tanto tempo distante nesse vácuo sem nome, longe dos rituais que fornecem a todos não só identidade, mas a reconfortante ilusão de se ter alguma utilidade, tem um preço alto quando se opta por fazer isso no isolamento. Sei que ao retornar aos meus, serei bem recebido e aceito novamente como o membro de sempre, mas no meu íntimo, não sou mais o mesmo, pois as quarenta noites no deserto me deram novas referências, novos pontos de observação e possivelmente o que mais busquei, a ausência de certezas, a confirmação de que não era verdadeiro o dom da clarividência que por anos eu pensava possuir.