sexta-feira, 4 de junho de 2010

A carteirinha de estudante toscamente falsificada aumentou minha idade para dezoito anos. Foi assim que conseguir entrar no cinema com alguns amigos para assistir ao Laranja Mecânica (1971), do genial Stanley Kubrick (1928-1999), quando finalmente liberado pela censura, em 1981 com cortes e outras restrições para o público. A história de adolescentes viciados num tipo de leite lisérgico e que reunidos em gangs uniformizadas aterrorizavam uma apática Londres do futuro, falida econômica e socialmente, ficou na geladeira da ditadura militar por dez anos por conter as famosas cenas de nú frontal feminino, jamais vistas até então em telas brasileiras. Também continha o que foi chamado de ultraviolência, envolvendo racismo, tortura, estupro, espancamento, assassinatos e uma cena com uma imagem religiosa que incomodou bastante a Igreja Católica.
O irônico nisso é que a ultraviolência a que tanto se temia que os jovens da época ficassem expostos, hoje em dia, faz parte da realidade diária de meninos e meninas do Brasil, no caso de uns, nas comunidades onde moram ou estudam, no de outros nos fóruns, blogs e inúmeros outros locais de compartilhamento de vídeos e games pela internet.
“Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o sexto dia”.

                (Gênesis 1, 31)

Bom é o começo! Quando o desejo alimentado se materializa em puro gozo. A busca de todos é pelo começo, pois é no começo que o tesão se intensifica hidratando a alma sedenta das delícias do começo. Melhor mesmo é no começo, até que se tenta retê-lo para que jamais deixe ser começo. Esforço inútil, pois é nesse ponto que tudo começa desacelerar para estagnar no meio. É no meio que as crises brotam da resistente semente do enfado. É no meio que o desejo surta e desanda em não se sentir mais satisfeito tal como no começo, quando tudo era satisfatoriamente desejável. É também no meio que um tipo de medo às vezes fala em recomeço, tentando desesperadamente retornar ao que não mais existe apenas fazendo de conta que ainda são os mesmos que eram no começo. Ao se perder de vez um começo, o que permanece é uma grande disposição para novamente deixar-se iludir, quase sempre na companhia de um outro, com as viciantes fantasias do sempre breve começo.

terça-feira, 1 de junho de 2010

“Um dia, como filhos da natureza, fomos irmãos e irmãs de todos os vivos!” Isso dito assim soa meio “Avatarzado”, e pior ainda, quando contraditoriamente falado aqui do alto da segura árvore da prosperidade neoliberal, onde vivemos sem reclamar dessa deliciosa doutrina do consumo sem freio e sem culpa. Mas se algum dia, em nome de salvar “Pandora”, fôssemos obrigados a descer e voltar a viver uma espartana vida mega-alternativa de bosquímanos e aborígenes, sentiríamos na pele que se há uma coisa que a natureza não tem é pena... de ninguém. Segundo Dawkins, nossa velha boa mãe é egoísta, xenófoba, violenta e tá pouco ligando para quem não sabe se virar no solitário ou no gregário, na marra ou na esperteza, que é o outro nome do oportunismo. Nesse ponto podemos dizer que somos na essência filhotes dela. A natureza adora nos ver ralar até chegar aos ossos, até estar tudo quase por um fio, pois para ela, quando desfrutamos por um pouco do estar vivo e aproveitamos esse tempo para reproduzir, já basta, é o grande prêmio. Estar à beira do precipício é que faz surgir o par de asas. O fim dos dentes é o começo do bico. Ficar muito dentro d´água cria nadadeiras.
Às vezes nos meus momentos mais "Woodstock" penso ingenuamente que seriamos infantilmente felizes se vivêssemos o simples, desprovido de posses, ruralmente assentados, vegans, orgânicos e puros! Uma existência verdadeiramente in natura apenas pelo existir, tal como parece ser para qualquer outra criatura que infesta o planeta. Depois volto a lembrar que uma vez em eras passadas tivemos uma existência assim, mas sabe-se lá o porquê, fomos nos mudando e nos complicando, talvez porque no fundo, no fundo, o simples existir já não nos bastasse mais.

domingo, 30 de maio de 2010

Havíamos acabado de jantar num restaurante com vista para baía e enquanto voltávamos para a pousada, ele como sempre, amável, gentil, inteligente, não cansava de demonstrar em ações e palavras, o quanto me amava. A confiança dele em se dar, cumprindo tudo o que havia prometido, era atestado pelo brilho no olhar enquanto falava radiantemente sobre nós. Para não dizer que nunca, nessa noite eu senti sim pena dele, por não suspeitar em momento algum que minha parte nas promessas nunca foi verdadeira. Nem ao menos uma das muitas vezes em que jurei que o amava até aos ossos era verdade. Temos estado juntos até aqui apenas para a minha conveniência, porque a solidão me apavora a ponto de não suportar sequer a ideia de viver só. Tenho amado sim, não ele, mas a companhia, a paciência, o carinho, o bom humor, o sexo, a certeza de que sempre estará por perto. Ele ainda não sabe, mas eu já marquei o dia para seguir em frente com um outro. Por que tem de ser assim? Honestamente, não sei, deve ser porque eu sempre fui mesmo desse jeito.
Acho que no fundo temos sim um engasgo a respeito da duração das coisas que pulsam por um tempo indeterminado e depois cessam de pulsar! Pode ser que lidar com a sensação de passagem sem que a possamos controlar ou evitar que algo passe, nos levou a buscar maneiras de compensar essa impotência. Uma delas seria a invenção de conceitos de continuidade, seja num plano alternativo de existência imaterial num lugar aprazível ou desprazível, seja numa ininterrupta jornada carmica entre ida e vindas.
Neste respeito, o que parece unir crentes e agnósticos é apenas o luto. O afastamento involuntário de um querido, quer por expirar naturalmente seu "prazo de validade", quer por uma trágica antecipação disso, quase sempre tem um efeito devastador até mesmo para os que vêem nele um perfeito mecanismo regulador de recursos, necessário para renovação e o equilíbrio sustentável da vida no planeta.