quinta-feira, 22 de outubro de 2009


Moro em mim num espaço onde só cabe o que concebo. Moro com meus distúrbios, meus solilóquios, meus horrores estimados, minha casta lascívia, minhas paixões petrificadas, meu medo de estimação e claro, meu pau em riste, que é meu unicórnio! Habito em mim há tempos, num cômodo minúsculo, sem janelas para ventilar meus desejos, iluminado apenas pelo azul-fluorescente, pirilampeado dos meus constantes enganos.

[Minha Casa] É mais fácil cultuar os mortos que os vivos. Mais fácil viver de sombras que de sóis. É mais fácil mimeografar o passado que imprimir o futuro. Não quero ser triste como o poeta que envelhece lendo Maiakóvski na loja de conveniência. Não quero ser alegre como o cão que sai a passear com o seu dono alegre sob o sol de domingo. Nem quero ser estanque como quem constrói estradas e não anda. Quero no escuro como um cego tatear estrelas distraídas. Quero no escuro como um cego tatear estrelas distraídas. Amoras silvestres no passeio público. Amores secretos debaixo dos guarda-chuvas. Tempestades que não param. Pára-raios quem não tem, mesmo que não venha o trem, não posso parar. Vejo o mundo passar como passa uma escola de samba que atravessa! Pergunto onde estão teus tamborins? Sentado na porta de minha casa, a mesma e única casa. A casa onde eu sempre morei.
[ Zeca Baleiro ]

domingo, 18 de outubro de 2009


A mania de buscar num afeto (o objeto) uma forma de arrancar grandes pedaços na paz que reside em nós é muito antiga. Lá pelo século XII, um abade francês interessado em relações humanas registrou pela primeira vez, as regras dos jogos sociais com objetivo de aproximar casais e promover núpcias na Europa medieval. Naquela época, as bodas eram um ritual social tipicamente dos ricos ou nobres, embora nem todos os nobres fossem ricos. O cara era André Capelão e o livro, o famoso “O Tratado do Amor Cortês”. “Cortês” porque se tratava estritamente do “amor” na corte e foi justamente dentro das cortes européias que poetas e menestréis começaram a propagar o “amor erótico” como sendo um sentimento inquestionavelmente puro e superior a todos os demais. Usei de propósito o termo “amor erótico” apenas para citar que o “erótico” teve de ser substituído mais tarde por “romântico”, uma vez que “erótico” lembra sexual, e sexo como se sabe, era um pecado sério pela ótica da Igreja. Erotizar o amor era bater de frente com a idealização do amor-divino que passou a constar na parte religiosa dos rituais cristãos de núpcias. Era por isso que tais rituais só podiam ser realizados por um sacerdote e obrigatoriamente dentro dum templo. Passados séculos desde Capelão, continuamos não só presos ao conceito do amor (erótico) como o mais nobre dos sentimentos, mas também acreditando que se dedicar a ele incondicionalmente, é a coisa mais importante que alguém pode fazer na vida. A crença nisso é tão forte que até o Jobim teorizou; “é impossível ser feliz sozinho”.
E assim seguimos cultuando o amor erótico como superior a tudo o que existe na vida e adoramos pensar assim, pouco importando os desagradáveis efeitos colaterais que costumam vir junto com ele. Parece que herdamos essa adoração ao amor (erótico) da literatura dos colonizadores europeus que além da língua, assimilamos também a base dos hábitos contidos nos valores que formam a nossa vida privada. A superioridade do amor (erótico) estava presente tanto nas “Histórias de Cavalarias” na Idade Média, quanto nos romances e folhetins produzidos por autores ligados a um feroz, passional e afetado movimento do século XVIII, chamado Romantismo. Então, a partir do século passado o romantismo (leia-se; amor erótico) virou não só uma forte doutrina para os que buscavam fervorosamente celebrar rituais de núpcias, mas também um rentável produto nas mãos de empresários do entretenimento em Hollywood. O mesmo fenômeno de vendas pode ser visto atualmente nas telenovelas, na verdade, netas legítimas dos folhetins. Hoje em dia, somos mais filhos do amor erótico da “cultura pop” que do amor fraternal dos evangelhos, a ponto de passarmos o dia inteiro sem pensar em outra coisa que não seja querer ser amado, uma vez que o amor erótico exige que sejamos correspondidos. Nos tornamos tão obcecados na coisa de querer primeiro; ser amados (leia-se; desejados), que diariamente respiramos amor, comemos amor, bebemos amor e claro; sofremos até chorar sangue por amor. Se tudo isso ainda não for suficiente, morremos ou até mesmo matamos... mas sempre por amor.
"Fácil é ver que o amor é uma paixão. Isso porque angústia nenhuma é maior que a provocada por ele, pois o enamorado está sempre no temor de que sua paixão não atinja o resultado desejado e de que seus esforços sejam baldados. Teme também o falatório da multidão e tudo o que, de uma maneira ou de outra, possa prejudicar seu amor, pois é bem freqüente que uma perturbação mínima impeça de levar a bom termo o que se ia consumar. Se o enamorado é pobre, teme que a amada vilipendie sua penúria; se é feio, teme que ela despreze seu físico ingrato ou que procure o amor de alguém mais belo; se é rico, teme que sua passada parcimônia acabe por reverter em prejuízo; e, para dizer a verdade, não há ninguém que possa contar em minúcias os temores do enamorado. Essa espécie de amor é, pois, uma paixão não-recíproca que se pode chamar de "amor singular". Mas, uma vez correspondido o amor, as angústias que surgem não são menores; porque cada um dos dois amantes teme perder, pela ação de um terceiro, aquilo que conquistou com tanto esforço".

"Tratado do Amor Cortês", escrito na Europa no século XII por André Capelão,