sexta-feira, 4 de março de 2011

O grande rebanho trêmulo é antigo e sempre esteve interessado numa barganha que favoreça a própria salvação. É uma rendição sem resistência aos que se valem de sofismas e falácias para montar o pano de fundo do que se entende por existência. No entanto, a única coisa que os move para um objetivo é o medo da morte, a iminência de uma perda tão aguda que precisa de um ufemismo para que não doa tanto.
Para os que se submetem a isso, basta um enigma, um paradoxo, uma equação de infinitas variáveis, para logo emitirem em coro um chamado de desamparo.



É a necessidade de uma voz que os mantenha de joelhos no mármore limpo e com o rosto voltado para o leste, como os súditos de um califado ou as que ainda moças, se entregam espontaneamente à uma sacerdotisa que antes de imolá-las, irá banhar-se no leite das mais dóceis, das que decididamente não sabem o que fazer quando encontram a porteira escancarada.
O uivo da alcatéia lá fora as faz entrar em pânico e a implorar aos céus por um border collie que as conduza direto para lâmina afiada, mas piedosa, do tosquiador.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Foto: Corbis
Savana africana, meio-dia, sol forte. Agachado atrás de uma moita ressequida, um velho leão solitário, já grisalho, faminto, mas incrivelmente paciente. Próximo dali, agachado atrás de outra moita, um jovem gato do mato, cheio de tiques, transpirando ansiedade. Vez por outra erguia nervosamente a cabeça para espiar e contar em voz alta o rebanho de antílopes ariscos, que desconfiando de tudo, bebiam inquietos às margens do lago. Quando o pequeno felino, contou a vigésima, o velho leão já meio puto, mas muito polido, resolveu intervir.

Leão – Amigo! Não me leve a mal, mas assim, vai acabar espantando a comida...
Gato – Vô nada! Ela tá muito longe e estamos contra o vento...
Leão - Cê tá aí faz muito tempo?
Gato – Tô nada! Cheguei agora... cumé que tá hoje?
Leão – Semana passada tava melhor... zebras saborosas, impalas enormes, javalis suculentos. Hoje é isso aí que cê tá vendo... meio devagar.
Gato – Tá mesmo meio fraco, né? E aí, já traçou alguma?
Leão – Quer saber? Não vale à pena nem sair da moita e se cansar à toa. Olha lá aquela corsa, já viu coisica mais raquítica? Tenho que confessar, realmente tá um horror!
Gato – É... tô vendo! Mesmo assim vou ficar por aqui e encarar...
Leão – Se fosse você nem perdia tempo, tô pensando até em ir lá pro outro lado, ouvi dizer que tá bom à beça...
Gato – Tá nada! De onde acha que eu vim? É o seguinte, por que a gente não junta nossos talentos? Você com seu tamanho, velocidade, força e eu com minha inteligência... a gente atacaria rápido, de surpresa, depois dividiria cada pedaço e blá, blá, blá, blá...
Leão (de saco cheio) – Tá bom, tá bom... cê tem razão! Eu topo fazer uma parceria contigo.
O Gato não parava de falar alto demais, gesticulava e se mexia tanto atrás da moita, que os animais começaram a fugir espantados. O leão, mais puto ainda, resolveu dar um basta naquela situação. Assumiu posição de ataque e começou a gritar.
Leão – Olha lá! Olha lá! Tá vendo? Nossaaaa! Que beleza!!
Gato – O que? Onde? Onde?
Leão – Não tá vendo não? Aquela grandona alí perto da pedra...
Gato – Onde?
Leão – Tá cego cara! Ali ó!
O gato chegou a um grau de ansiedade tão intenso que mais parecia uma pipoca, dando saltinhos para o ar na tentativa de conseguir um ângulo melhor daquilo que acreditava ser o banquete dos deuses.

Leão – Nosssaaa!! Que pernão! Que coxão! Putz! Que lombo!

Desesperado, quase à beira de um colapso por não estar conseguindo enxergar a melhor promessa de refeição da vida dele, o gato do mato num ataque de insanidade, se esqueceu quem era e correu para onde estava o leão, na tentativa de ter a mesma visão do paraíso que o colega de moita, ficando quase de rostinho colado ao do enorme primo.
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Savana africana, um pouco mais de meio-dia, sol forte. Enquanto degustava o ex-sócio falastrão, o leão na meia-idade aproveitava a sombra de um gigantesco baobá para filosofar.

Leão – A natureza é mesmo um espanto! Como pode um chato vivo ser tamanho porre, mas como petisco, uma iguaria tão nobre?

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Ilustração: Frank Hockdan
Mesmo com o quarto escuro, percebi quando ela se materializou, agachando e chegando o rosto bem perto do meu travesseiro. Assim que teve certeza da dissipação do meu sono, acendeu o abajur e sentou-se na minha cama. Recostei-me na cabeceira para ouvi-la reclamar por quase um minuto das coisas que ela mesma havia falado no conto Nº 16. Ao terminar, ficou me olhando a espera de alguma explicação.
Custou, mas consegui convencê-la de que embora ela fosse simplesmente fruto da minha imaginação, eu não sou responsável pelas coisas que os personagens que eu criam falam e nem me dou ao trabalho de julgá-los por isso. Terminei dizendo que não me interesso pelas escolhas que fazem, não aprovo ou desaprovo o que pensam e na maioria das vezes, sequer sei o nome deles.
Isso tem acontecido com frequência sempre que interrompo uma história e passo algum tempo sem trabalhar nela. Eles surgem do nada, geralmente altas horas da noite ou de madrugada e quase sempre me acordam. O curioso é que nenhum até então, havia se tornado tão ativo. A observação sem qualquer intromissão é uma condição que me impus desde que resolvi transformar a vida deles em ficção. Falo “meus personagens” apenas por uma questão de semântica, pois na verdade, não os possuo. Eles não existem por minha causa, nem eu os considero meu alterego. Não são o que são para me agradar e nenhum deles é movido pelo que sinto, penso ou acredito. Não os controlo, apenas voyeurizo seus segredos e registro aquilo que eles mesmos desejam que eu mostre aos leitores.