sexta-feira, 1 de agosto de 2008


O passado pode se tornar uma entidade que solicita regularmente que se cumpra uma liturgia chamada nostalgia. Em principio é um processo saudável e bastante comum depois de se viver algumas décadas. É fácil nos sujeitar às lembranças não com carinho calmo e terno de quem guarda queridos, mas como quem se prende a um fetiche. Em torno da nostalgia, criamos história, identidade, arqueologia, tradição, mitologia, cultura. O lado obscuro disso é quando o registro guardado não contém as imagens que costumam adoçar nosso sorriso ao serem buscadas. Se for esse o caso, o passado se torna um uivador medonho, um arrastador noturno de correntes no sótão, cuja existência se destina somente a um propósito; impedir que tenhamos uma noite tranqüila.Quem é constantemente visitado pelo que não tem mais como ser consertado, modificado, arrumado, sofre duas vezes como diz o ditado. É como abrir a tampa de um pote com algo orgânico que se decompõe lentamente. Quando a gente vira prisioneiro dos nossos próprios pensamentos, o remoer passado costuma não ter fim. Quer seja para lamentar uma amargura ou para desejar a volta de uma felicidade já extinta, a asfixiante paralisa causada pela retenção sem propósito prático do que passou, pode nos privar de aproveitar pequenos deleites que o presente deixa generosamente ao nosso alcance para ser beliscado antes das refeições. Situações breves, coisas simples que tecem o cotidiano numa terça-feira comum entre contas e noticias que não lemos e nem vemos, delícias corriqueiras que se forem percebidos com mais atenção, podem gerar um prazer novo. Curto sim, perecível, efêmero sim, mas certamente tão significativo como prova da nossa existência que seria de fato, um grande desperdício deixar que passem do presente atual para um novo passado, sem deixar algum registro em nossa memória.

quarta-feira, 18 de junho de 2008


“As coisas não têm paz”, diz um poema do Antunes. Não têm e não haveria uma maneira de ter. A paz é uma fantasia humana e não das coisas. Quando uma promessa de paz nos chega em forma de calmaria discreta, duma brisa quase imperceptível e incapaz de mover uma mecha, logo gritamos: “pasmaceira!” Quando ela mostra em gestos suaves, numa lentidão discreta e pausada, abrindo espaço para a uma ausência de conflitos, bocejamos reclamamos: “rotina chata”! Então, quando proclamamos “queremos paz!”, é apenas um manifesto nulo para esconder que no intimo, é a ausência de paz, o que de fato desejamos.
A paz tem por hábito fazer a sesta como o cansado de dias que olhando para um horizonte sem nuvens tenta não se lembrar mais dos anos de luta. A paz se move lentamente comendo plantas rasteiras em Galápagos! A paz não tem pernas de centro-avante. A paz não pesa e como também não tesa, não comicha, nem faz brotar prurido. A paz não é vermelha e nem branca. A paz espera e não cansa! Não oferece aderência para ventosas tóxicas de quem não quer paz. E ninguém em verdade quer paz!
Dentro de cada um de nós Ares ergue a lança! No Peloponeso grita e inflama a tropa para retomar Esparta. Onde deveria haver um oásis, Hades forja a lamina, o afiado fio da insatisfação e da intolerância apressada. Não queremos paz, queremos uma grande asa incandescente. Se a paz morar no corpo, desesperadamente desejamos algum outro onde não há paz. Quando ela deita ao lado, não a reconhecemos. Não flertamos com a paz, não casamos com a paz, não queremos filhos com ela e até mesmo quando temos a sorte de não ter contra quem lutar, deixamos para trás o silêncio de estar em paz e nos voltamos ruidosamente contra nós mesmos, para travar nossa interminável guerra particular.

sexta-feira, 23 de maio de 2008


O adestramento é uma das mais antigas técnicas para se condicionar uma criatura à um comportamento que ela mesma não pode escolher. Geralmente é ministrado por alguém que acredita estar num nivel mais elevado duma hierarquia, portanto, apto e com poderes divinamente concedidos para impor sua vontade a outros. No desempenho de sua atividade, o chamado adestrador, recorre ao uso de comandos de voz, que podem variar de argumentação fantasiosa sem consistência, discurso non sequitur, apelo emocional com incitação de sentimentos de culpa e o uso de persuasão direta, onde fica claro a posição de ambos dentro da esfera de poder. Para dar início ao processo, usa-se primeiro um tom de voz maternal quando a criatura se mostra doce e submissa, mas este pode mudar para outro mais firme, um pouco mais ameaçador, podendo chegar em alguns casos, a um tom mais enérgico em situações quando a criatura se mostra obstinada. Não é comum ao adestrado questionar os motivos de estar sendo submetido ao programa padrão, mas caso faça muitas perguntas, isso é considerado imediatamente como uma grave afronta ao programa, necessitando ser desencorajada através da aplicação de sanções a fim de evitar que outros imitem tal comportamento. As sanções mais comuns são; humilhar em particular ou em público, ranquear com objetivo de exibir os méritos ou deméritos do adestrado, privá-lo de algum beneficio até então usufruído e em casos extremos, o castigo moral, podendo chegar até mesmo ao físico. Na maioria dos casos, o adestrado é levado a acreditar que o programa é parte natural do seu mundo, que é normal as coisas acontecerem assim mesmo. Na prática, a técnica consiste no condicionamento sistemático de uma rotina vigiada e repetitiva, até que a criatura aceite realizar, após um comando, uma série de ações previamente programadas e de interesse exclusivo do adestrador. Para se obter uma maior resposta cognitiva, alguns adestradores, usam apenas o modo de fixação "punir ou recompensar". Quando a criatura não realiza o truque corretamente, é submetida a uma advertência e depois a um castigo. Caso faça conforme o comando determina, é recompensada por afagos ou um pequeno petisco.

A CONFRARIA DOS FAUNOS, 2005.

terça-feira, 6 de maio de 2008


DEPOIMENTO

Na época, quem viu a altura das labaredas pensou que fosse insanidade dele. Entretanto, eu era um dos poucos amigos que sabia que aquilo era apenas cansaço. Acho que o fogo representou naquele momento uma reestruturação pessoal. Era como um rito de passagem. A dificuldade dele não foi fazer a pilha, mas decidir quem seria eliminado. A idéia de incinerar poetas lhe causava grande mal-estar. Acreditava que um dia teriam alguma utilidade. Então, deu todos para um cara que mantinha uma biblioteca comunitária na periferia. Os que viraram cinza naquela noite, foram os que ele mesmo chamou de grande monturo perfumado. O curioso é que semanas antes, tudo aquilo fazia parte do tesouro que mantinha sem empoeirar desde que voltara do exílio em Paris. Sobre aquele tempo, comentou certa vez numa roda de amigos: “Em 1968 fazia sentido viver aquilo”. Ele se referia ao fervor romântico pela luta de classes e outras questões que na juventude dele eram de suma importância, mas que atualmente não pareciam fazer parte da lista de preocupações diárias dos seus alunos no curso de Economia.
Mesmo assim eu sabia que a fogueira não tinha sido um protesto solitário contra o modo pós-moderno de se enxergar a nova ordem das coisas hoje em dia. A vontade de se livrar do que tinha acumulado uma vida inteira, veio logo depois da viagem a Cuba em 2005. Voltou determinado. Parou de dar aulas na universidade e em seguida licenciou-se do IPEA. Tinha mesmo se cansado e vivia falando sobre achar um outro encantamento que tivesse bem distante da velha cruzada. Um amigo nosso sugeriu o grupo que freqüentava há tempos. Ele até foi algumas vezes. Achou o universo neo-pentecostal corporativo demais. Queria sim reflexão metafísica, mas queria também silêncio e isolamento. Contou mais tarde que a idéia foi crescendo aos poucos, até que numa noite enquanto esperava o efeito do remédio, ouviu George Harrison no ipod da mulher e começou a se perguntar: “por que não?”. Sabia que era um processo já gasto, clichê puro, lugar-comum de todo bicho-grilo nos anos 70 e totalmente anacrônico. Ainda assim, por que não?
Então aconteceu desse jeito; dois anos após a fogueira, largou tudo para trás e iniciou aos 52 anos, uma dura escalada até uma remota região entre a Índia e o Paquistão. Com ajuda de um guia-interprete, encontrou a 3.500 metros o que desejava. Após um longo período de conversas enigmáticas sobre ciclos de vida e morte, rejeição aos insalubres desejos ocidentais, o sadhu centenário, antes de aceita-lo como discípulo, quis saber algo que deixou o candidato a novo pupilo bastante cabreiro. O ancião desembrulhou um cobertor de lã de Yaki e exibiu um notebook novinho em folha. Conectou sem dificuldade o cabo do modem a uma parabólica pendurada no telhado da tapera e perguntou com a serenidade de um iluminado: “Orkut ou MySpace? Em qual deles sugere que eu faça o meu perfil?”
Svenska e Antonio Carlos
Linköping, 1972


_ Fala pra mim o que te angustia agora?
_ (sorriso) Tá tudo bem...
_ Mesmo?
_ (o mesmo sorriso)
_ Saudade de casa... seus filhos...
_ Eles estão bem... minha casa agora é aqui!
_ (sorriso, abraço)
_ Dá mais um pedaço...
_ ...
_ Como é mesmo o nome disso?
_ Fransk Äppelkaka!
_ (tenta pronunciar e não consegue)
_ Tem que fazer assim com a língua, vai, faz?
_ Esquece... (risos) depois eu tento...
_ (beijo)
_ Então... preocupa não tá?! Tem coisas que ainda passam pela minha cabeça. Muita coisa mudou no dia em que eu soube, através de tudo que já te contei que hoje sou esse e não mais aquele. Eu to me sentindo bem aqui. Já me acostumei com quase tudo, o frio, a comida bem diferente. Ainda amo a alegria e a luz intensa dos trópicos, mas não sinto falta de nada estando aqui.
_ Não mesmo?
_ No começo estranhei a língua, mas agora já consigo até falar seu nome sem mastigar a ponta da língua. (riso).
_ (riso)
_ Quero agora, outros saberes, alguns bem mais simples do que aqueles que me torturavam depois das minhas escolhas. Descobri aqui, uma porrada de coisa que não sabia. Tá me fazendo bem deixar queimar o caminho que me trouxe aqui. A rota vai continuar viva aqui dentro, mas o pavimento, as pedras que usei pra calçar os passos, eu entreguei tudo ao passado. Hoje só preciso demolir os escombros, o que não serve mais. Preciso continuar aqui, pela paz e em paz.
_ Quer mais um pedaço?
_ ...