sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011


Foto: José Lemos

Prestes a fazer 60 anos, decidiu cruzar sozinho o Caminho de Santiago. Sabia que fazer isso era um velho clichê beatnik banhado em Castañeda, mesmo assim, gostava de pensar que de alguma forma, aquela jornada espartana o ajudaria a se despir um pouco da crença no dinheiro como única fonte de segurança.
Surpreendentemente, conseguiu vencer com êxito os trechos mais duros da peregrinação. Conheceu pessoas que jamais pensou que pudesse um dia dividir uma tigela de sopa de batatas com pão embolorado, ouviu delas histórias inacreditáveis, chorou sozinho numa noite fria, bebeu água que não tinha o nome Evian escrito no rótulo, teve bolhas nas solas dos pés, soube o que era passar um dia inteiro com o corpo sujo e pela primeira vez na vida dormiu ao relento. Sentia algo que não conseguia exatamente como descrever, mas que o supria profundamente.
Depois de semanas conectado ao que já considerava divino, resolveu ligar-se novamente ao terreno colocando o iphone para recarregar numa casa modesta onde pernoitou.
Foi na manhã seguinte, na estrada a poucos quilômetros do fim do trajeto, quando os Pirineus já não representavam mais barreira alguma para conexões com o mundo materialista, que o aparelho no bolso puído da bermuda vibrou insistentemente. O sócio em pânico despejou-lhe no ouvido uma lista interminável com as piores noticias possíveis sobre tudo o que ele ainda não sabia. Ele também não sabia que aquela forte dor no peito irradiando pelo braço, não era cansaço e que não adiantaria passar a bandana molhada na testa, nem tomar toda água cantil. Recostado sobre a mochila, à sombra duma grande árvore, ele ainda não sabia que em alguns segundos, aquela maravilhosa vista duma paisagem rural no sul da França, seria a última coisa que veria na vida.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Foto: Corbis



































iris de hórus
ver é ilusão compartilhada
tire o fóton da jogada
e verás o tato virar visão

g. rosza (2006)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011


Soa meio esquisito falar que havia calmaria nos arredores do posto 6 num sábado de madrugada, ainda mais àquela hora, mas a verdade é que havia sim e a prova era o franzino carioca itabirano sentado em bronze de pernas cruzadas, sem ser importunado por turistas ou vândalos. Pode-se dizer que a única coisa que o incomodava um pouquinho, era o vento frio da orla batendo-lhe nas costas sob a camisa fina. Uma vez, houve um movimento que pretendia virá-lo para o Atlântico deixando-o de costas para a Atlântica, mas é sabido que poeta algum aceitaria ser tão comodamente poupado do castigo de Sísifo, do destino de Prometeu. O louro do poeta é ser tachado de maldito e no caso dos chacais de Copa, a via-crucis mais importante era ser arrastado Rainha Elizabeth acima até o Arpoador por um rio caudaloso de furiosos falsos pudicos.
Não é à toa que dentre os que jaziam penando no inferno de Dante, estavam dois poetas que caminhavam calmamente por entre os que agonizavam e gemiam implorando refrigério. Um deles, numa procura inútil por Beatriz e o outro, em busca duma razão que fizesse tudo valer a pena até mesmo quando se sabe que a alma é pequena.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Foto: Bill K.




































Há muitos anos, fui xamã numa antiga confraria hermética que se apega demais às próprias certezas e refuta a dos outros como não sendo verdadeiras. Aplicando-se a isso uma boa dose de relativismo, não creio que esse fato faça deles, piores ou melhores do que muitos dos que também se convencem de que o “bem” e o “mal” podem ser personificados e representados por figuras mitológicas antropocêntricas ou por um código escrito que se crê que possua todas as respostas para as angústias e ao mais doloroso dos temores humanos. Contudo, deixei de ser xamã por sentir que minha visão já não cabia mais nesse modo de enxergar as coisas e mesmo que hoje eu me sinta muito mais satisfeito como desgarrado, caminhando em frente e tendo apenas minha própria sombra como seguindor, mesmo que já não faça mais parte de nenhuma casta, clã ou horda, acho importante e bastante compreensível que muitos sintam profunda necessidade de se orientar por algum tipo referência positiva para organizar e catalogar as abstrações de uma mente potencialmente curiosa e criativa.