Chegando ao bicicletário, ficou impossível não reparar no pacote peludo na cesta do guidão. Grande, bonito e rajado, ficou claro depois da boa receptividade aos afagos, que também era doce, amistoso, porém, nem tão jovem. Bastou um giro no corpo depois de colocá-lo no colo e uma olhada mais precisa, para revelar que na verdade, era ela. A partir de então, dois sentimentos surgiram repentinamente, um foi o desejo de levá-la para casa, o outro, o medo de que em vista de algumas urgências que estavam se acumulando durante o último ano da faculdade, isso poderia não ser uma boa. Ao certificar-se de que a “pessoa” amarela e branca com listras marrons não pertencia a ninguém daquele lugar, deixou com a gerência um número para contato, caso houvesse reclamação. E lá foram as duas, confiantes em tudo, como se aquele trajeto, pedalado entre o estacionamento do Walmart até o apartamento, tivesse sempre feito parte do dia-a-dia delas.
Com o passar dos meses, uma até já sabia o que a outra pensava, antecipando telepaticamente pequenas ações quase imperceptíveis. Um dia, quando as economias permitiram, o velho notebook branco passou a coexistir respeitosamente com outra engenhoca da maçã mordida. Daquele momento em diante era comum vê-las deitadas sobre o tapete da minúscula sala ao redor daquele retângulo luminoso. Enquanto uma tocava com a ponta dos dedos a tela brilhante, abrindo e fechando aqui ou acolá, páginas e mais páginas de leitura, sobrevoando alguma cidadezinha da Escócia, a outra parecia mais interessada em fotos de esconderijos de papelão e arranhadores.
Foto: Diane Howe / Europress |
Assim, seguiam-se dias e noites sobre o tapete, em cima da cama ou no sofá, com a beladona de grandes olhos esverdeados, eriçando vibrissas para tudo que popapeava e girava dentro da telinha cheia do que se ver, ouvir, tocar e arrastar. Não foram poucas as vezes que a curiosíssima criatura balançava o rabo como se também estivesse entendendo os muitos emails engraçados enviados diariamente por um tal abbaco_120@yahoo.com.
Como fazia toda manhã antes de sair para o trabalho, tomou banho, trocou de roupa e colocou no pratinho o punhado de ração. Chamou a companheira de patas brancas para juntas, tomarem o café da manhã, mas não houve resposta. Na sala, sobre o tapete, o tablet ligado com o teclado virtual acionado e o editor de textos aberto. O cursor ainda pulsava logo depois de uma série de frases engatadas sem vírgulas e palavras sem acentuação. Em algumas poucas linhas escritas em Britannic Bold, no corpo 14, um bilhete carinhoso, que entre outras coisas, agradecia a dona do ipad, pela acolhida, pelo afeto e pela amizade inesquecível nos últimos meses do que tinha sido o final de uma sétima vida.