quinta-feira, 1 de outubro de 2009

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Tentei abrir os olhos, mas a dor intensa não deixava. Ainda assim consegui sentir a claridade e um forte calor que fazia o suor escorrer pela minha testa. Também não consegui identificar o local, mas o barulho de instrumentos metálicos e o corre-corre de pessoas vestidas de branco estavam me fazendo acreditar que era o setor de emergência de algum grande hospital público metropolitano. O mais estranho, no entanto, era não conseguir sentir o resto do corpo. Querer esfregar os olhos e não sentir as mãos para fazer isso. De imediato, pensei numa grave lesão na coluna depois de um acidente talvez ou um tiro. Tento chamar um dos médicos que estava próximo e não consigo mover os lábios. A dor no rosto ainda persiste e aos poucos começo a lembrar de algumas coisas. Lembrei por exemplo que era um domingo logo após o almoço quando sai de casa para comprar cigarros. Eu descia a Consolação quando um cara comum, nem novo nem velho, vestindo roupas comuns, vinha em minha direção e fumava com tanto gosto que não pude resistir a pedir-lhe um cigarro. Não sei dizer se o conhecia, provavelmente não. Lembrei que depois de me dar o cigarro, pediu para que saísse rápido de perto dele. Parecia apressado e assustado olhando em volta. Perguntei se havia algum problema, mas não consigo me lembrar da resposta. Lembro de ter me encostado num poste e fechado os olhos para dar um trago profundo, quando o tapa no meu rosto fez o cigarro cair longe. Não lembro bem da cara deles. Lembro que vestiam paletós de tergal. Um deles usava óculos em estilo rayban com as lentes esverdeadas. Havia um outro, um sarará, com o pixaim repartido de lado e bastante lambuzado de Brill Cream. Apontaram-me armas e gritaram para eu colocar as mãos na cabeça. Lembro das algemas machucando meu pulso enquanto me empurravam para dentro da Rural Willys verde sem placas. Também me lembrei do capuz fedorento pinicando meu rosto e me fazendo espirrar. Lembrei de estar nu de cabeça para baixo, dos vômitos com gosto de sangue e depois de cada choque na virilha, vinham perguntas que eu não sabia as respostas. Coisas sobre CPC, Marighella, MOLIPO, a localização do "aparelho". Do que aconteceu depois me lembro de quase nada, apenas do escuro, do calor e de estar tudo quieto.
A diminuição da dor nos olhos tornou possível entre outras coisas, abri-los um pouco mais para perceber melhor o lugar e a movimentação intensa dos homens de branco. Um deles se aproxima e vira minha cabeça um pouco para o lado. Pude sentir um aroma agradável de algo sendo refogado em azeite e alho. Isso me fez perceber melhor não apenas que tipo de lugar era aquele, bem como o que realmente estava acontecendo. Também não demorou muito para o homem de branco se aproximar novamente da minha cabeça, desta vez com uma lâmina de inox numa das mãos. Estranhamente comecei me lembrar de tudo. Fui tomado por uma lucidez mórbida diante do pouco tempo que sabia que já não tinha. Tempo insuficiente para fazer mais perguntas, demonstrar medo ou horror, mas o bastante para saber que tão logo o cutelo do sous chef divida meus pensamentos em pequenos gomos bem temperados, o que restar do que eu fui, finalmente voltará ao escuro profundo e silencioso, onde eu residia em paz antes de ter sido dado à luz.

Ao Raul (in memoriam)

A CONFRARIA DOS FAUNOS (2005)

quarta-feira, 30 de setembro de 2009




RETÓRICA ROMÂNTICA S.A.

Já fui um lobisomem juvenil. Significa que uma parte do que fui da juventude a até pouco tempo atrás, foi construída numa época em que estar ligado as causas (ideias) era considerado muito mais importante que estar ligado as coisas (gadgets). Isso porque um pouco antes da queda do muro, as pessoas dentro do meu circulo social viviam num Brasil romântico onde a ditadura militar já dava os seus últimos suspiros e por isso mesmo, achávamos que tínhamos vencido. Nessa época as ideias ainda chegavam a gente através dos livros de intelectuais europeus (em sua maioria), filósofos contemporâneos como Sartre e Focault, pelo contato com amigos engajados na UNE, estudando em universidades públicas e claro, pelas canções de protesto do Chico ou pela verborragia de Caetano, Gil e companhia. Tudo o que a censura não conseguia pegar, a gente “traduzia” e usava como um evangelho. Era tudo muito classe-média, muito suburbano, ingênuo e lírico como eram os Marighela e os Baader-Meinhof da vida. Anos mais tarde, depois que tudo aquilo acabou, eu tava vendo um programa do Abu e de repente ele soltou_ “Romântico tem mais é que se fuder”. Imaginem o Abujamra com aquele olhar feroz de Tiranossauro Rex vociferando isso para câmera?
Quando comentei a frase recentemente numa roda de amigos, acrescentando que ele tinha razão, quase fui linchado, não por ter pronunciado alguma heresia, mas porque esqueci que para alguns na mesa, romântico significava apenas ser alguém de “coração adocicado” vivendo uma aquecida paixão sazonal. Eu, no entanto, estava falando da outra definição do termo, falava do perfil ingênuo e em muitos casos, quase cego, de crédulos que morreram e ainda morrem em vão tentando dobrar no discurso, na bomba ou no fuzil, um sistema de coisas que não tá nem ai para a ideologia que alguém professa crer. Falava dos paladinos de hoje em dia, que seguindo o modelo de antigos mártires revolucionários, ainda gastam (de graça) suas vidas, sem buscar obter lucro, dedicando-se a lutar ideologicamente pelos párias de todos os guetos. Ainda hoje podemos ver alguns, distribuídos em “nanopartidos” fragmentados do “partidão”, que com as bocas cheias dum discurso marxista mofado, ainda tentam fazer prosélitos. Acreditam piamente sob o manto anacrônico de uma inocência pueril, que verdades, bondades, justiças e corações cheios de boas intenções são o que de fato fazem mudar o rumo social das coisas num mundo que nunca esteve tão corporativo. Não enxergam que são interesses, vantagens pessoais políticas ou econômicas, que giram as engrenagens de grandes mudanças sociais. Ah! O G-20 tem agora a voz da vez. Tem mesmo? Ah! O proletariado subiu ao poder na America Latina. Subiu mesmo? Basta uma lida superficial em “Animal Farm” do Orwell pra entender que certos fatores combinados, costumam empurrar qualquer revolução “bem intencionada” para aos pouquinhos, ir se prostituindo diante dos interesses de uma pequena confraria, bastando para isso, o uso hábil de algum carisma e meia dúzia de falácias populistas.
O fato é que cada desencanto trás no seu gosto a sensação de que “romântico tem mesmo é que se fuder”. Grito isso para mim toda vez que ainda uivo lembrando o quanto militei romanticamente em tudo que foi causa de esperar Godot. O mundo mudou e sempre vai mudar para que continue sob a guarda das mesmas castas. Parece que não importando a época, os ajuntamentos humanos nascidos das desigualdades sempre terão a forma de uma pirâmide que toca os céus. No topo; os mesmos, tomando “uma fresca” e bem mais abaixo, tomando na bunda, os românticos.