quinta-feira, 1 de outubro de 2009

743
Tentei abrir os olhos, mas a dor intensa não deixava. Ainda assim consegui sentir a claridade e um forte calor que fazia o suor escorrer pela minha testa. Também não consegui identificar o local, mas o barulho de instrumentos metálicos e o corre-corre de pessoas vestidas de branco estavam me fazendo acreditar que era o setor de emergência de algum grande hospital público metropolitano. O mais estranho, no entanto, era não conseguir sentir o resto do corpo. Querer esfregar os olhos e não sentir as mãos para fazer isso. De imediato, pensei numa grave lesão na coluna depois de um acidente talvez ou um tiro. Tento chamar um dos médicos que estava próximo e não consigo mover os lábios. A dor no rosto ainda persiste e aos poucos começo a lembrar de algumas coisas. Lembrei por exemplo que era um domingo logo após o almoço quando sai de casa para comprar cigarros. Eu descia a Consolação quando um cara comum, nem novo nem velho, vestindo roupas comuns, vinha em minha direção e fumava com tanto gosto que não pude resistir a pedir-lhe um cigarro. Não sei dizer se o conhecia, provavelmente não. Lembrei que depois de me dar o cigarro, pediu para que saísse rápido de perto dele. Parecia apressado e assustado olhando em volta. Perguntei se havia algum problema, mas não consigo me lembrar da resposta. Lembro de ter me encostado num poste e fechado os olhos para dar um trago profundo, quando o tapa no meu rosto fez o cigarro cair longe. Não lembro bem da cara deles. Lembro que vestiam paletós de tergal. Um deles usava óculos em estilo rayban com as lentes esverdeadas. Havia um outro, um sarará, com o pixaim repartido de lado e bastante lambuzado de Brill Cream. Apontaram-me armas e gritaram para eu colocar as mãos na cabeça. Lembro das algemas machucando meu pulso enquanto me empurravam para dentro da Rural Willys verde sem placas. Também me lembrei do capuz fedorento pinicando meu rosto e me fazendo espirrar. Lembrei de estar nu de cabeça para baixo, dos vômitos com gosto de sangue e depois de cada choque na virilha, vinham perguntas que eu não sabia as respostas. Coisas sobre CPC, Marighella, MOLIPO, a localização do "aparelho". Do que aconteceu depois me lembro de quase nada, apenas do escuro, do calor e de estar tudo quieto.
A diminuição da dor nos olhos tornou possível entre outras coisas, abri-los um pouco mais para perceber melhor o lugar e a movimentação intensa dos homens de branco. Um deles se aproxima e vira minha cabeça um pouco para o lado. Pude sentir um aroma agradável de algo sendo refogado em azeite e alho. Isso me fez perceber melhor não apenas que tipo de lugar era aquele, bem como o que realmente estava acontecendo. Também não demorou muito para o homem de branco se aproximar novamente da minha cabeça, desta vez com uma lâmina de inox numa das mãos. Estranhamente comecei me lembrar de tudo. Fui tomado por uma lucidez mórbida diante do pouco tempo que sabia que já não tinha. Tempo insuficiente para fazer mais perguntas, demonstrar medo ou horror, mas o bastante para saber que tão logo o cutelo do sous chef divida meus pensamentos em pequenos gomos bem temperados, o que restar do que eu fui, finalmente voltará ao escuro profundo e silencioso, onde eu residia em paz antes de ter sido dado à luz.

Ao Raul (in memoriam)

A CONFRARIA DOS FAUNOS (2005)

2 comentários:

Camilla Dias Domingues disse...

eu nunca sei se é ficção ou vida real. mas será que não tem uumpoucodevidareal na ficção????
rsrs!

GIL ROSZA disse...

hahahahaha... é a mais pura realidade pretty pretta. o raul disse uma vez que "O prato mais caro do melhor banquete é
O que se come cabeça de gente que pensa
E os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam
Porque quem pensa, pensa melhor parado" (metro linha 743).
"o cérebro gente que pensa" sempre foi uma iguaria fina para os paladares fascistas e. antes era a ditadura quem os comia, mas hoje no pósmodernismo, quem os come é o mercado.