domingo, 27 de fevereiro de 2011

Ilustração: Frank Hockdan
Mesmo com o quarto escuro, percebi quando ela se materializou, agachando e chegando o rosto bem perto do meu travesseiro. Assim que teve certeza da dissipação do meu sono, acendeu o abajur e sentou-se na minha cama. Recostei-me na cabeceira para ouvi-la reclamar por quase um minuto das coisas que ela mesma havia falado no conto Nº 16. Ao terminar, ficou me olhando a espera de alguma explicação.
Custou, mas consegui convencê-la de que embora ela fosse simplesmente fruto da minha imaginação, eu não sou responsável pelas coisas que os personagens que eu criam falam e nem me dou ao trabalho de julgá-los por isso. Terminei dizendo que não me interesso pelas escolhas que fazem, não aprovo ou desaprovo o que pensam e na maioria das vezes, sequer sei o nome deles.
Isso tem acontecido com frequência sempre que interrompo uma história e passo algum tempo sem trabalhar nela. Eles surgem do nada, geralmente altas horas da noite ou de madrugada e quase sempre me acordam. O curioso é que nenhum até então, havia se tornado tão ativo. A observação sem qualquer intromissão é uma condição que me impus desde que resolvi transformar a vida deles em ficção. Falo “meus personagens” apenas por uma questão de semântica, pois na verdade, não os possuo. Eles não existem por minha causa, nem eu os considero meu alterego. Não são o que são para me agradar e nenhum deles é movido pelo que sinto, penso ou acredito. Não os controlo, apenas voyeurizo seus segredos e registro aquilo que eles mesmos desejam que eu mostre aos leitores.

2 comentários:

Anônimo disse...

Personagens... o autor usa sua imaginação para criá-los? Ou eles tomam vida por si mesmos como se fossem entidades separadas da mente do autor? As duas formas não seriam a afirmação de que existe algo externo ao autor regendo a sua escrita? Longa discussão... Abraço, Carol

Unknown disse...

Gosto da forma como vc tenta se afastar dos seus personagens e largar eles ao Deus dará. Acho que para quem te conhece e lê seus contos, deve achar estranho que você não defende a sordidez ou a amoralidade de algum deles.. rsrs.