terça-feira, 6 de maio de 2008


DEPOIMENTO

Na época, quem viu a altura das labaredas pensou que fosse insanidade dele. Entretanto, eu era um dos poucos amigos que sabia que aquilo era apenas cansaço. Acho que o fogo representou naquele momento uma reestruturação pessoal. Era como um rito de passagem. A dificuldade dele não foi fazer a pilha, mas decidir quem seria eliminado. A idéia de incinerar poetas lhe causava grande mal-estar. Acreditava que um dia teriam alguma utilidade. Então, deu todos para um cara que mantinha uma biblioteca comunitária na periferia. Os que viraram cinza naquela noite, foram os que ele mesmo chamou de grande monturo perfumado. O curioso é que semanas antes, tudo aquilo fazia parte do tesouro que mantinha sem empoeirar desde que voltara do exílio em Paris. Sobre aquele tempo, comentou certa vez numa roda de amigos: “Em 1968 fazia sentido viver aquilo”. Ele se referia ao fervor romântico pela luta de classes e outras questões que na juventude dele eram de suma importância, mas que atualmente não pareciam fazer parte da lista de preocupações diárias dos seus alunos no curso de Economia.
Mesmo assim eu sabia que a fogueira não tinha sido um protesto solitário contra o modo pós-moderno de se enxergar a nova ordem das coisas hoje em dia. A vontade de se livrar do que tinha acumulado uma vida inteira, veio logo depois da viagem a Cuba em 2005. Voltou determinado. Parou de dar aulas na universidade e em seguida licenciou-se do IPEA. Tinha mesmo se cansado e vivia falando sobre achar um outro encantamento que tivesse bem distante da velha cruzada. Um amigo nosso sugeriu o grupo que freqüentava há tempos. Ele até foi algumas vezes. Achou o universo neo-pentecostal corporativo demais. Queria sim reflexão metafísica, mas queria também silêncio e isolamento. Contou mais tarde que a idéia foi crescendo aos poucos, até que numa noite enquanto esperava o efeito do remédio, ouviu George Harrison no ipod da mulher e começou a se perguntar: “por que não?”. Sabia que era um processo já gasto, clichê puro, lugar-comum de todo bicho-grilo nos anos 70 e totalmente anacrônico. Ainda assim, por que não?
Então aconteceu desse jeito; dois anos após a fogueira, largou tudo para trás e iniciou aos 52 anos, uma dura escalada até uma remota região entre a Índia e o Paquistão. Com ajuda de um guia-interprete, encontrou a 3.500 metros o que desejava. Após um longo período de conversas enigmáticas sobre ciclos de vida e morte, rejeição aos insalubres desejos ocidentais, o sadhu centenário, antes de aceita-lo como discípulo, quis saber algo que deixou o candidato a novo pupilo bastante cabreiro. O ancião desembrulhou um cobertor de lã de Yaki e exibiu um notebook novinho em folha. Conectou sem dificuldade o cabo do modem a uma parabólica pendurada no telhado da tapera e perguntou com a serenidade de um iluminado: “Orkut ou MySpace? Em qual deles sugere que eu faça o meu perfil?”

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